Digam bem ou digam mal, a verdade é que quase toda a gente já voou na Ryanair, e continuamos a voar porque os preços são simplesmente imbatíveis.
Mas como será trabalhar para esta Companhia Aérea, que em tempos adorava ser odiada? Como será ser Comissário de Bordo da Ryanair?
Na edição desta semana do ” A palavra a quem é”, falei com o Hugo, um antigo amigo do rugby da Académica, que depois dum rico percurso na área do Turismo, assentou base há alguns anos na Ryanair. Vai-nos contar tudo acerca da vida dum comissário de bordo na Ryanair.
Olá Hugo! Como é que chegaste a Comissário de Bordo na Ryanair?
Licenciei-me em Turismo pela Escolar Superior de Educação de Coimbra em 2007, e fui trabalhar para a Agência de Desenvolvimento Turístico da Letónia, em Riga, onde estive cerca de um ano. Infelizmente foi o início da crise económica na Europa de Leste, maioritariamente com os países com grande ligação aos Estados Unidos, como era o caso da Letónia. Assim sendo comecei à procura de emprego e entrei para a a AFA–Press, empresa com capitais norte-americanos, e baseada em Madrid e Londres, que produzia relatórios económicos para diversos meios de comunicação social. Depois de uma breve passagem por Madrid, mudei-me para Angola, Luanda, onde desenvolvi um relatório de desenvolvimento económico, relacionado com o primeiro grande evento nacional depois do pós-guerra, e das primeiras eleições livres em 2008, que foi a Taça das Nações Africanas, que veio a ser publicado no International Herald Tribune, e na sua congénere America, o New York Times.
Tendo sempre o desejo de regressar a Portugal, e depois de 2 anos com a AFA-Press pelo mundo, concorri para uma posição como Técnico de Turismo, e acabei colocado na Câmara Municipal de Oleiros, onde permaneci como Técnico Superior de Turismo até 2010, quando por imposição estatal a capacidade de indevidamente e de contratação de novos técnicos foi revogada aos Municípios, e eu vi-me forçado novamente a mudar de emprego.
Foi nessa altura que tomei conhecimento da contratação de Comissários de Bordo para Ryanair, e embarquei nessa aventura.
Que tipo de formação tiveste que ter antes de seres hospedeiro de bordo?
Todas as pessoas que entram na Ryanair tem que passar inicialmente por um período de seleção que serve para determinar a capacidade dos candidatos para superar o período de formação futuro. Depois disso, dá-se início a um período de formação intensiva de 6 a 8 semanas (dependendo da carga horária), no meu caso foram 6 semanas com formação 6 dias por semana, onde os horários são das 8 da manhã às 7 da noite, com exames diários e provas de seleção constantes. Durante este período os candidatos a comissário de bordo são treinados a nível de segurança, salvamento, primeiros socorros, havendo também alguns módulos de serviço ao cliente, não sendo no entanto essa a prioridade do treino inicial. O treino de serviço ao cliente é percecionado como um “on the job training”, e não como uma prioridade de formação inicial. A prioridade da Ryanair é, como em qualquer outra companhia, a segurança.
Estás baseado onde, e que rotas costumas fazer?
Atualmente estou baseado no Porto. Comecei a minha carreira na base de Reus, em Barcelona, tendo sido transferido para o Porto em 2012. No verão de 2013 fui convidado para ir para Faro durante 3 meses, no período do verão, convite que aceitei com grande agrado, uma vez que o Verão no Algarve é fantástico, e tive oportunidade de fazer novas rotas, novos amigos, e de trabalhar com outro tipo de passageiros. No que às rotas diz respeito, todas as bases da Ryanair tem uma enorme especificidade de rotas, uma vez que a companhia adapta as rotas aos mercados recetores e emissores das suas bases, de forma a otimizar as rotas e os aviões. Assim sendo, o mercado mais forte para o Porto é o francês, com uma forte incidência no “turismo da saudade” e de “visita a familiares e amigos” (emigrantes e luso-descendentes) tendo atualmente cerca de 15 rotas para França. Depois há também rotas para Espanha (Madrid, Barcelona, Las Palamas, Tenerife e Valencia), Alemanha, Holanda, Bélgica, Itália e Reino Unido.
No que toca as rotas feitas por mim, não há rotas fixas, podendo fazer todas as rotas disponíveis no calendário no decorrer de um mês.
Descreve-nos o teu dia típico de trabalho?
Todos os dias começam com um briefing na nossa Crew Room (escritório). 45 m antes do voo os 4 tripulantes tem um briefing onde discutem tempo de voo (por normas 2 ou 4 voos diários), número de passageiros, procedimentos de embarque, flow of service (modo como fazer os diversos serviços do voo), promoções de produtos, etc… É também efetuada uma revisão de conhecimentos, onde o chefe de cabine faz várias perguntas de segurança e primeiros socorros, de forma a garantir que todos os tripulantes estão com o seu conhecimento em dia. Seguidamente temos um briefing conjunto com o Flight Deck (pilotos), onde discutimos tempos de voo, condições climatéricas, e outras informações relevantes ao dia. Como uma equipa dirigimo-nos para o avião (é nesta altura que temos o primeiro encontro com os passageiros, por norma junto às portas de embarque). Entramos no avião, efetuamos as nossas verificações de segurança, e assim que o avião estiver pronto, iniciamos o embarque.
Qual é a melhor parte de ser Comissário de bordo na Ryanair? E a pior?
Acho que é sem dúvida a quantidade e diversidade de pessoas com quem contactamos diariamente. Todos os dias tenho oportunidade de conviver com cerca de 600 pessoas, num ambiente estranho e confinado, que geralmente dá aso a conversas e situações engraçadas. Eu tento ao máximo aproveitar as situações para sair enriquecido, tendo já tido oportunidade de conhecer imensas pessoas que me convidam para visitar as suas empresas, a quem eu recomendo sítios para ir jantar o visitar. Tive até uma proposta de trabalho de uma marketeer famosa da nossa praça (que eu não fazia ideia quem era na altura) que gostou da forma como eu promovia alguns dos produtos que temos a bordo. Ser comissário de bordo é um pouco como ser Médico de Família, não há uma única especialização de área. Temos que ter a capacidade para dizer a um passageiro para se sentar com autoridade, para depois tratar dele se estiver doente, apagar um fogo se necessário, servir um café depois, e entretanto aconselhar um perfume para a sua mãe e um hotel para dormir nessa noite. Há toda uma diversidade de atuações que fazem deste trabalho único, e que diariamente se apresentam para me desafiar.
A pior? Será sem dúvida ter que ser simpático e educado para alguém que não o é. Muitas vezes os passageiros tem a tendência para pensar que numa companhia Low Cost o serviço é também ele Low Cost. Eu discordo completamente, e não gosto quando as pessoas fazem essa presunção. Claro que cabe a nós, a fila da frente da companhia, provar o contrário.
Tens alguns benefícios de trabalhar na Ryanair? Tipo bilhetes à borla?
A Ryanair é uma companhia Low Cost e aí, infelizmente, faz-se valer da sua sigla. Todos os funcionários de cabine da companhia têm direito a Staff Travel, que basicamente é o pagamento das taxas de aeroporto. Claro que aos preços dos bilhetes, por norma nunca viajo em Staff Travel, comprando os bilhetes com antecedência e viajando como “passageiro normal”. No entanto em “last minute” o Staff Travel dá muito jeito, e evidentemente que saímos beneficiados comparativamente com o passageiro normal. No entanto está longe de ser um programa comparável com outras companhias da concorrência.
A Ryanair é provavelmente a companhia aérea mais odiada da Europa- Qual é a tua opinião acerca disto e como te sentes de trabalhar para esta companhia aérea?
A Ryanair cultivou durante muito tempo um ódio de estimação com os passageiros, tendo um lema claro de “viajam barato por isso não queixem”. Durante quase 20 anos foi suficiente para ter taxas de crescimento astronómicas e de fazer desta postura a sua imagem de marca. Assim como ter como arma de arremesso o nosso bombástico CEO Michael O´Leary, que fazia tudo para promover a companhia, enquanto instigava a concorrência. Ele costumava dizer que “bem ou mal, desde que falem é sempre bom”, fazendo questão de promover as falências das companhias áreas da concorrência (quando a bmi baby faliu, o novo avião que recebemos dizia “bye bye baby” na lateral) e de destronar tudo e todos com Marketing agressivo e preços abaixo de mercado. Tudo isto, associado a um programa de receita auxiliar (bagagem cobrada nas portas de embarque, reemissão de cartões de embarque e a politica de “no refunds”) fez com que muitas pessoas voassem na Ryanair em último recurso.
Lidar com esta situação diariamente não é fácil, e muitas vezes requerer algum compromisso da nossa parte. A verdade é que mesmo com todas estas situações, a Ryanair tem uma legião fiel de passageiros, e eu próprio considero-me um “believer” na doutrina de voar barato. A Ryanair veio democratizar o ar, com isso perdeu-se muito do glamour da aviação, é um facto, mas por outro lado permitiu a milhões de pessoas transformar o transporte área num meio de transporte, e não num luxo. Penso se avaliarmos objectivamente a situação, a Ryanair introduziu mais mudanças boas que más, e foi sem dúvida a responsável por hoje termos uma noção de proximidade diferente dentro da Europa. Muitas vezes oiço que “Paris fica já ali, são 50€ pela Ryanair” e não consigo deixar de sorrir por que acho que mesmo de uma pequena forma, eu contribuo diariamente para esta mudança de mentalidade.
A Ryanair está a tentar mudar agora de imagem, e ser mais amada também. Que nos podes dizer acerca disto? Tiveram algum training/formação nesse sentido?
Um pouco no seguimento do que falamos na pergunta anterior, a Ryanair no último ano decidiu mudar a sua forma de atuação. Claro que por ser uma companhia com um grande crescimento económico, e porque os resultados operacionais sempre foram uma das suas mais fortes bandeiras de defesa do modelo de negocio, foi com alteração na receita que se decidiu que tinha que mudar. Pela primeira vez na história da companhia recrutou-se um Diretor de Marketing, Kenny Jacobs foi indigitado para a tarefa de “melhor as relações da companhia” e de tirar de cena o nosso CEO de forma a melhor a perceção da Ryanair junto dos consumidores. Rapidamente se viram as mudanças mais radicais da sua história; um novo site, mais limpo, simpático e intuitivo; redução das taxas de reimpressão dos bilhetes, das malas nas portas de embarque, e das malas de porão; redução dos números de “avisos sonoros” a bordo dos voos; 2 malas de cabine em vez de uma; voos noturnos com luzes reduzidas e sem anúncios de vendas; lugares numerados para todos os passageiros; malas de porão gratuitas na porta, etc… Nunca se tinham visto tantas mudanças em tão pouco tempo, e mais estão para vir. Muitas mais…
Nesse sentido foi também preciso adaptar a atitude e posição das tripulações no que respeita aos novos parâmetros da companhia. Está neste preciso momento a decorrer um novo módulo de Serviço ao Cliente, com novas formas de abordagem, novos produtos, e novas facilidades para os funcionário e passageiros. Tudo no sentido de melhorar a experiencia a bordo. É uma mudança profunda que todos os dias se faz sentir. Penso que já faz a diferença, e vai cada vez se notar.
Tens alguma amiga que tenha participado no calendário da Ryanair? E para quando um calendário masculino com a tua participação?
Sim, tenho. Algumas. É engraçado vender os calendários quando elas fazem parte das tripulações. Se bem que foram proibidos de vender em Espanha, aparentemente ofendiam alguém… Também devem ter parado de vender pneus da Pirelli, que eles também têm um calendário (os Espanhóis “adoram” a Ryanair). Calendários masculinos? Já se fala nisso. Quando eu vou participar? LOL… acho que teria que ser na secção mais de 30, meios barrigudos e carecas. Eu costumo dizer que podia ser o 13ª mês, que com a Troika deixou de existir. Sabes que a Ryanair não é bem os Bombeiros Sapadores de Setúbal, mas se calhar já faltou mais.
São só mesmo os tugas que batem palmas quando o avião aterra?
Não, de todo. Há passageiros que não têm reação nenhuma, como os Alemães (que não tem grande sentido de humor) ou até os Espanhóis (que como referi anteriormente “adoram” a Ryanair). Os Franceses batem palmas (mas são quase todos Luso descentes, portanto deve ser disso) mas os Italianos também gostam, e os Holandeses como vêm de férias também costumam bater (são um povo divertido e simpático).
Confessa lá, já não suportas aquela corneta quando o avião chega a horas não?!
Não, nada disso. A corneta é como as Raspadinhas, são uma das imagens de marca da Ryanair e nunca devem deixar de existir. Uma vez até estávamos sem o sistema das gravações, e eu próprio fiz a Corneta e o aviso de pontualidade. “Welcome, you have arrived on yeat another on time flight…” foi de rir. É geralmente nesta altura que as pessoas batem palmas, na eventualidade de ainda não ter acontecido. É também a altura em que os passageiros que tem medo de voar ficam mais descontraídos. Cria um bom ambiente, e no último voo significa que vou para casa mais cedo.
Qual é a tua teoria para o avião desaparecido da Air Malaysia?!
Ui. Deves ser para aí a centésima pessoa a perguntar-me isso. Não há dia que passe que não me façam essa pergunta. Sinceramente, acho que o avião foi desviado e está aí num sitio qualquer. Atualmente é impossível um avião desaparecer assim, a não ser que alguém queira que ele desapareça. Claro que tem sido um tema de conversa, e já ouvi de tudo, desde os “aliens” até à teoria do triângulo das bermudas. Se não fosse uma tristeza enorme, até que dava para rir. Acho que nunca vamos saber ao certo o que se passou.