Acordei de manhã a pensar que este seria provavelmente o dia mais perigoso da minha vida. As palavras do cônsul paquistanês em Lisboa ecovoam-me pela cabeça ” O Paquistão é um país seguro para turistas, mas há certas zonas que são de evitar. O deserto do Baluchistão é uma zona de extremistas religiosos paquistaneses, talibans afegãos, rebeldes separatistas, traficantes de ópio ou simplesmente bandidos sequestradores- deves atravessar essa zona o mais rapidamente possível!” (o que será que havia nesta zona que atraía a patifaria toda!?! Provavelmente a falta de lei e ordem era o suficiente…)
Não tinha outra hipótese, se quisesse continuar por terra do Irão para a Índia (uma questão financeira e de orgulho ) . A alternativa via Afeganistão não era verdadeiramente uma alternativa e mais a norte, via Turcomenistão seria um pesadelo de vistos, sem falar do tempo e dinheiro. Os relatos que lia de outros viajantes dizia que era possível atravessar este deserto e, tirando um outro caso menos afortunado, conseguia-se passar!
Já era perto da hora de almoço quando o guarda fronteiriço iraniano me carimbou o passaporte com um visto de saída e um good luck! (nunca é bom sinal quando o tradicional “have a nice day” é substituído por um good luck…). Tinha ainda uma viagem de 12 horas de autocarro para atravessar o maldito deserto…O plano era de fazer a travessia durante o dia, mas sentia que começava a ficar tarde e parte da viagem iria ser feita de noite…

Ao entrar no posto fronteiriço paquistanês, um barraco no meio duma paisagem árida (imaginar cenário Rambo III),preparava-me para explicar porque é que um português queria entrar no Paquistão vindo do Irão . Mas ninguém me perguntou nada para além do debitar do nome de jogadores de futebol do costume, assim que viram o meu passaporte. Todo o processo foi rápido e cá fora já estava uma carrinha pickup à espera, onde nos amontoámos na parte de trás, para sermos conduzidos ao aldeamento mais perto, Taftan, de onde partiam os autocarros para atravessar o deserto do Baluchistâo com destino a Quetta, a primeira grande cidade para quem chega do Irão e de onde se pode apanhar um comboio para o resto do país.

Apesar do nervosinho miúdo estava confiante. Durante a travessia da fronteira tinha travado conhecimento com um rapaz paquistanês, o Ali, que falava razoavelmente bem inglês. Agora que penso, tudo pareceu mais fácil (e seguro) porque o tinha a meu lado. Mostrou-me de onde saía o autocarro, a que horas, quanto custava, onde se esperava, onde e o que comer. Pelo meio ia-me contando a sua história de vida incrível: Trabalhava nas obras em Teerão (quem diria que o Irão recebe emigrantes!) e voltava ao Paquistão para ver a família. Anteriormente, tinha tentado entrar na Grécia ilegalmente pela Turquia, pagando 1000 euros a um “traficante humano” mas tinha sido apanhado pela polícia turca e expulso. Como sabia que se dissesse que era paquistanês o seu passaporte seria confiscado ao chegar ao Paquistão pelas autoridades ,disse que era Afegão sem documentos, e foi largado no meio dum país em guerra, de onde teve que voltar pelos seus próprios meios até ao Paquistão! Agora, tentava poupar dinheiro para pagar uma passagem (ilegal) para a Austrália. São estas pequenas experiências que nos fazem ver quanta sorte temos de viver onde vivemos e relatizamos todos as “durezas” e crise do nosso país…

Enquanto esperávamos pela partida do autocarro, o Ali levou-me a um restaurante para comer e dormir uma sesta. Disse restaurante? Antes um tasco. Melhor: um quarto numa casa, onde alguém nos trouxe comida. Simples, sem talheres. Só pão estilo nam, e um guisado de carne picada. Delicioso e o início duma experiência culinária no Paquistão que adorei (ps: ignorar higiene!)
Ali confirmou os avisos do cônsul paquistanês: Sim, é perigoso. De vez em quando assaltam uns autocarros, roubam o que podem, às vezes matam e outras vezes sequestram. Mas não te preocupes, está nas mãos de Deus- inshallah vamos ter uma viagem segura! Ali tinha Alah a quem confiava o destino, eu, um pobre infiel, esperava ir à boleia da sua fé!
Perto da hora da partida aproximamo-nos do autocarro. Fiquei agradavelmente surpreendido: esperava um chaço velho mas deparo-me com um autocarro com ar moderno, com umas rodas maiores que o costume e uma suspensão levantada- um prenúncio do tipo de estrada que iriamos ter pela frente disse para mim próprio. A minha mochila foi prontamente içada para o tecto, juntamente com as malas, cobertores, plásticos e produtos, de certo alguns contrabandeados do Irão, como manda a tradição em qualquer cidade fronteiriça. À volta, os passageiros e os locais esperavam em círculos, jogando ao berlinde. Olhavam para mim com um ar curioso e espantado, mas sempre com um sorriso. E eu dizia para mim próprio, pela nésima vez nesse dia: ” O que é que eu estou a aqui a fazer!?”

E finalmente partimos a meio da tarde! O autocarro ia cheio e depressa o motorista colocou uma música saída dum filme de Bollywood, numa voz estridente feminina que não mais nos largou até ao fim da viagem. Ali deixou-me o lugar à janela para ver a paisagem lunar do deserto do Baluchistão. Era um deserto daqueles com mais pedra do que areia, até perder da vista. A estrada começou mais ao menos boa, até se tornar mais má que boa e por fim só má. Atrás e à frente iam outros autocarros. A técnica da caravana do faroeste para evitar ataques índios também era utilizada também neste canto do mundo.
O autocarro avançava pelo deserto, comendo kilómetros atrás de kilómetros. Seria impressão minha ou conduzíamos rápido de mais para o tipo de estrada que era? Este era claramente um sítio em que a segurança rodoviária não era a prioridade para o condutor…Ao cair da noite fizémos a primeira e única paragem. Dois barracos em tijolo de cimento faziam de estação de serviço. Um para as orações um outro para comer, onde nos dirigimos. Lá dentro, uma tela de plástico azul no chão servia de mesa, toalha e assento ao mesmo tempo. Deixei o Ali pedir por mim e rapidamente chegou um prato semelhante ao que tinha comido ao almoço, que avalei rapidamente, imitando os meus colegas de viagem. Nunca a expressão parar é morrer me pareceu tão adequada.
Foram 12 horas de olho aberto- se não era a adrenalina do momento a manter-me acordado, era a trepidação da estrada a ecoar-me pelo costado, através do assento duro e usado. Tudo parecia correr sem incidentes até que, uma carrinha parada no meio da estrada, bloqueia o caminho! Parecia ter-se avariado e pedia ajuda…seria verdade ou apenas uma artimanha para parar o autocarro e pilhá-lo? O condutor, sem hesitar, saiu fora da estrada, fazendo um grande círculo, contornou a carrinha pelo deserto e voltou a entrar na estrada! Parar é morrer! Os meus companheiros de viagem riram-se para mim. Não consegui perceber se aqueles risos seriam um “escapámo-nos de boa” ou ” isto é o pão nosso de cada dia”….
O resto da viagem decorreu sem incidentes e por volta das 03h da manhã chegámos a Quetta são e salvos! O autocarro parou numa ruela estreita, onde já esperavam vários carros de familiares e táxis . Seria o fim da aventura? Nada disso- Ali disse-me que tinham havido uma série de assassinatos nos dias anteriores da “sua gente” , os Hazaras, um grupo étnico local, e que havia um clima tenso na cidade, esperando-se mais violência!Tinha de ir embora imediatamente! Subiu comigo para um táxi e deixou-me na estação de comboios, onde comprei um bilhete para atravessar todo o Paquistão,numa viagem de 24h até Lahore, na fronteira com a India, já numa zona segura!

